O paradoxo do programa bolsa família na vida das mulheres beneficiárias:
autonomia ou subjugação?
Palavras-chave:
Programa Bolsa Família (PBF), Desigualdades, desigualdade de gênero, Análise de Políticas PúblicasResumo
Resumo simples:
A garantia de direitos básicos através de políticas públicas e sociais é pilar para a construção de uma sociedade com dignidade e equidade. Um dos meios de assegurar essa indispensabilidade é por meio de políticas de proteção social, como o Programa Bolsa Família (PBF), que busca reduzir as desigualdades socioeconômicas. Essa garantia está posta transversalmente ao artigo 1º, da Constituição Federal, que assegura a dignidade humana, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. O objetivo deste estudo foi expor a correlação entre o PBF e a divisão sexual do trabalho, ao denunciar que o capital se apropriou da força de trabalho feminina. Isso se perpetua também por meio da titularidade feminina nos programas de transferência monetária, o que resulta na dualidade entre a autonomia e a subjugação. Dado o exposto, conclui-se que o paradoxo inerente ao patriarcado-capitalista-racista não diminui a conquista materializada no cotidiano das beneficiárias, ademais, tão pouco cessa a luta por sobrevivência e rompimento das determinações impostas para as suas vidas. O programa de forma una também não possui potencialidade para sucumbir às violências impostas às mulheres, portanto é imprescindível debater a implementação da transversalidade de gênero nas políticas públicas.
Palavras-chave: Programa Bolsa Família (PBF); desigualdade de gênero; Política Pública.
Resumo expandido:
Contextualização
De início, há de se mencionar, que todo Estado na modernidade tem a obrigação de garantir o bem-estar social para minimizar as disparidades sociais (CASTEL, 1998). Com isso, se tem a relevância das políticas públicas e sociais para a população em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Em contrapartida, uma das críticas feitas para o sucateamento dessas políticas é a atuação do Estado neoliberal, que não atende às necessidades sociais (FILHO, 2008). Esse descaso contribui para a fomentação da pobreza nacional por meio da manutenção do capital para os mais ricos. Nesse prisma, os programas de transferência de renda são um marco de mudança nas políticas públicas do Brasil.
Ao surgir o Programa Bolsa Família (PBF), uniu-se às ações realizadas pelo Programa Bolsa Escola, Auxílio-Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação do Fome Zero. (BRASIL, 2006). Em síntese, o programa de transferência monetária, criado durante o Governo de Luiz Inácio, busca garantir a minimização dos impactos da desigualdade social por meio da garantia de direitos sociais básicos. No entanto, ao analisar por um viés crítico sobre a configuração societária, nota-se que o PBF trata-se de um mecanismo de manutenção do Estado Burguês para garantir a produção e reprodução do capitalismo, uma vez que aspira-se um ciclo de consumo. Além disso, esse sistema perpetua os processos de privatização, supressão de direitos sociais e mercantilização de serviços públicos. (FILHO, 2008).
Perpassa ainda a temática, o viés crítico sobre as relações sociais de gênero nas configurações do sistema patriarcal-capitalista-racista, que naturaliza a permanência das mulheres no âmbito doméstico, determinando e limitando a subjetividade de suas vivências. (KERGOAT, 2009). Em outras palavras, a divisão sexual do trabalho trata-se de um paradigma estruturante e estrutural ao sistema, que designa a força de trabalho feminina aos serviços gerais de domicílio privado (MARCONDES, 2020), enquanto o provedor atua no trabalho reprodutivo remunerado. (MYRRHA, 2020).
Essa realidade se escancara ao se explanar que, no programa de transferência do Governo Federal, a ampla maioria dos lares tem uma mulher como responsável familiar. Na folha de pagamento de março de 2023, 81,2% dos benefícios concedidos estão em nome das mulheres. São 17,2 milhões do total de 21,1 milhões de famílias beneficiárias neste mês. (IBGE, 2023). A consequência disso é o familiarismo, uma vez que o programa expressa, de forma preponderante, um ideal de estereótipo feminino, ao invés do princípio da emancipação feminina.
Frente a isso, o capitalismo também estrutura a opressão e submissão das mulheres através de aparelhos estatais (ALTHUSSER, 1985). Esta fatídica realidade é notória através de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que mostram uma maior incidência de mulheres nos cargos como funcionária do lar, evidenciando uma feminização do cuidado. (CARRILHO, 2020).
Paralelo a isso, no que tange o âmbito do entendimento sociológico, Milton Santos (1999) conceitua três formas de pobreza e, assim, três formas de dívida social: a pobreza incluída, a marginalidade e a pobreza estrutural. Esse processo acarreta o ciclo da pobreza, em que não se objetiva a mudança da realidade da população, e sim a manutenção da posição de subserviência, a qual, abarca também as beneficiárias do bolsa família. Outrossim, os grupos mais marginalizados são as mulheres, pois, segundo dados divulgados pelo IBGE (2017), a pobreza - medida pela linha dos US $5,5 por dia - é característica marcante entre mulheres sem cônjuge, com filhos até 14 anos (55,6%). O quadro se acentua nesse tipo de arranjo formado por mulheres pretas ou pardas (64%).
Objetivo
O presente artigo discute o paradoxo do Programa Bolsa Família por ser, concomitantemente, um mecanismo de mitigação da pobreza vivenciada pelas mulheres empobrecidas e, também, um reforço na divisão sexual do trabalho, que subjuga a feminização dos cuidados.
Metodologia
A metodologia utilizada na referida pesquisa, trata-se de uma análise qualitativa, descritiva e exploratória, com base em documentos e revisão bibliográfica, da inserção e objetivos sobrepostos pelo Programa Bolsa Família e a sua influência sob a vidas mulheres (SAMPIERI, COLLADO e LUCIO, 2006).
A pesquisa em sua natureza, resgata a concepção de Leis, documentos oficiais e debates por meio da revisão bibliográfica, com autores/as de referência na temática.
Resultados
A contradição inerente na hegemonia do sistema capitalista reverbera em diversas instâncias da vida social. As relações de gênero, raça e classe também são utilizadas como instrumentos para a funcionalidade e para a manutenção e controle desse sistema, que corrobora para a mulher na manutenção da esfera do trabalho doméstico, o que reproduz e fortalece o patriarcado ao colocar a mulher no lugar de subjugada diante da relação de poder e dominação (FEDERICI, 2019; SAFFIOTI, 2015; KERGOAT, 2009).
Contudo, o histórico de desenvolvimento do Programa Bolsa Família não torna inegável a melhoria na qualidade de vida dessas mulheres, uma vez que as gestantes devem nutrir-se bem e fazer o acompanhamento de sua saúde e do bebê. (BRASIL, 2006). Em outras palavras, possibilita um acesso à saúde de forma regular e constante, tanto das mães quanto das crianças. Desta forma, a garantia de direitos sociais básicos também é um condicionante que resulta desse processo de contradição.
Para além disto, o recurso financeiro distribuído mensalmente permite que a beneficiária, inserida na desigualdade de gênero intrínseca na divisão sexual do trabalho, transite no papel de provedora. Assim, essa escolha do Estado contribui, previamente, para a autonomia feminina. (MOURA, 2015). Isso possibilita, ainda, a consciência de ser agente ativo na transformação de sua própria condição social, pois mesmo na posição de assistencialismo, permite-se que o ciclo da pobreza de suas famílias tenha a possibilidade de ser rompido. Além de libertar-se de relacionamentos abusivos através da autonomia financeira que, dentre as inúmeras causas para manter-se na relação, acaba por cercear a liberdade da mulher nas mais diversas esferas.
Por fim, é notório que mudanças nas relações de gênero são conquistas de longo prazo e abrangem dimensões diversas. Necessita-se de um processo de integração de perspectivas feministas no enquadramento das políticas públicas. Além de um fortalecimento no debate e na inserção da transversalidade de gênero. (MARCONDES; FARAH, 2021).
Referências
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