Desafios da política de cotas na pós-graduação: um estudo de caso sobre a Universidade Federal de Minas Gerais

Autores

  • Bianca Mendes UFMG
  • Ana Paula Karruz

Resumo

[Resumo simples]

Este trabalho objetiva identificar os desafios à ação afirmativa de cunho racial na pós-graduação stricto sensu e o faz a partir de estudo do caso da UFMG. Em 2017, esta instituição aprovou uma política de inclusão para pessoas negras, indígenas e com deficiência. A maioria das decisões – como o percentual de vagas a serem reservadas para negros (entre 20 e 50%) – foram descentralizadas, ficando a juízo dos colegiados dos programas de pós-graduação, numa estratégia de implementação bottom up. Empreendemos dois esforços: análise documental de editais de processos seletivos, gerando um banco de dados de ofertas, usado para estimar regressões; e análise de conteúdo de 18 entrevistas semiestruturadas com membros de colegiados e outros atores. Os resultados revelam que os percentuais de reserva se concentram no limite mínimo, com indícios de manutenção da estratificação horizontal: cursos de Humanas tendem a praticar um maior percentual em suas reservas que cursos das Ciências Exatas e da Terra, considerados mais elitistas e de maior prestígio. Além disso, foram identificadas numerosas barreiras de acesso às vagas reservadas (e.g., mesma nota mínima, independentemente da modalidade da vaga); fraudes na autodeclaração racial; e deficiências nas ações de fomento à permanência de cotistas, material e academicamente.

 

[Resumo expandido]

As desigualdades regionais, econômicas de gênero e étnico-raciais presentes na sociedade brasileira refletem-se na pós-graduação. Em particular é notável a sub-representação dos negros, que perfazem apenas 20% dos pós-graduandos stricto sensu (RIGHETTI; GAMBA; BOTTALLO, 2020). As ações afirmativas buscam aplacar sub-representações, de modo a promover igualdade de oportunidades, via condições especiais de ingresso e permanência de grupos historicamente marginalizados na mais alta esfera acadêmica (VENTURINI, 2019).

Nesse sentido, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aprovou, em 2017, uma política de inclusão para pessoas negras (pretas e pardas), indígenas e com deficiência em seus cursos de pós-graduação stricto sensu (i.e., mestrados e doutorados). A maioria das decisões – como o percentual de vagas a serem reservadas para negros (entre 20 e 50%) e os mecanismos para promover a permanência dos cotistas – foram descentralizadas, ficando a juízo dos colegiados dos programas de pós-graduação (PPG). Trata-se de uma estratégia de implementação bottom up, “de baixo para cima”, de forma que o burocrata pode alterar a conformação da política (SABATIER, 1986; BARRETT, 2004; LOTTA, 2010).

As possibilidades de experimentação dos colegiados de pós-graduação com a implementação das cotas e o grande número desses programas na UFMG oferecem um rico campo de análise, ainda inexplorado. Não conhecemos trabalhos anteriores que tenham estudado a implementação dessa política. Também, interessa analisar o potencial da reserva de vagas para conter a estratificação vertical (sub-representação da população negra na pós-graduação em geral) e a estratificação horizontal –distribuição desigual de grupos raciais entre cursos, com os grupos mais favorecidos acessando cursos de maior prestígio e/ou retorno financeiro (POSSELT; GRODSKY, 2017).

Nesse contexto, propusemos a seguinte questão: quais padrões de implementação e desafios emergem do conjunto de decisões descentralizadas sobre ações afirmativas tomadas pelos colegiados dos PPG da UFMG? Para endereça-la, empreendemos dois esforços de pesquisa, complementares entre si: i) descrever o panorama resultante das decisões descentralizadas, considerando a distribuição dos percentuais de reserva praticados e associações destes com características dos cursos; e ii) identificar eventuais entraves à plena efetividade da política de cotas na pós-graduação stricto sensu da UFMG.

Para isso, conduzimos um estudo de caso de abordagem mista, natureza descritiva, baseado em dois conjuntos de dados. O primeiro foi produzido por análise documental a partir dos editais dos processos seletivos dos 79 PPG acadêmicos da instituição, considerando as chamadas para o ingresso no primeiro e no segundo semestres do quinquênio 2018-2022, e outras características das ofertas (e.g., número de vagas). Estes dados foram complementados por informações referentes ao quantitativo de docentes, discentes e vagas reservadas efetivamente preenchidas, obtidas via consulta à Pró-Reitoria de Pós-Graduação. O banco de dados resultante, com 847 ofertas[1], serviu de objeto para o cálculo de estatísticas descritivas e estimação de modelos de regressão para dados censurados, em que a variável dependente é o percentual das vagas que foram reservadas para negros.

O segundo conjunto de dados foi produzido por transcrição de entrevistas semiestruturadas com 18 atores, os quais estiveram envolvidos na elaboração e coordenação da política ao nível central ou foram membros dos colegiados dos quatro programas que possuíam em 2022 procedimento de heteroidentificação racial. As entrevistas foram interpretadas via análise de conteúdo.

Os resultados apontam que os percentuais de reserva, tanto no mestrado quanto no doutorado, concentram-se no limite mínimo (i.e., 20%). Há indícios de manutenção da estratificação horizontal: os cursos de Humanas, historicamente mais engajados na temática étnico-racial, praticam um maior percentual em suas reservas, ao passo que cursos das Ciências Exatas das Ciências da Terra, considerados mais elitistas e de maior prestígio, tendem a adotar percentuais menores.

Além da área de estudo, a análise de regressão revela dois outros fatores associados com o percentual de reserva: o número de docentes no PPG e o número de vagas ofertadas no curso. As especificações estimadas controlam por conceito Capes; processo seletivo; idade do curso em 2022 e tamanho do alunado do curso; nenhum desses controles retornou significância estatística. A relação positiva entre número de docentes e percentual de reserva possivelmente é fruto da maior probabilidade de se ter pesquisadores de temas afins aos de interesse dos cotistas. Quanto à relação negativa com o número de vagas ofertadas, supomos que o percentual mínimo de reserva possa ser percebido como satisfatório em ofertas com mais vagas por corresponder a um número absoluto grande relativamente ao número de vagas reservadas em outras ofertas.

As entrevistas evidenciaram três classes de desafios para o êxito da política. Primeiro, foram citadas diversas barreiras de acesso às vagas reservadas, como a “meritocracia” (e.g., mesma nota mínima no processo seletivo, seja para candidatos da ampla concorrência ou da cota) e a resistências dos programas em acolher novos interesses de pesquisa (e.g., temas relacionados à negritude). Nos quatro programas selecionados, a ocupação média das vagas reservadas é de 29% no doutorado e 42% no mestrado, e a mediana de 35% para o doutorado e 42% para o mestrado. Segundo, a usurpação de vagas reservadas por pessoas que não têm esse direito. Para evitar fraudes, o caminho encontrado foi o da heteroidentificação, mas ainda com baixa adesão. Terceiro, a deficiência das ações de fomento à permanência, seja do ponto de vista material (e.g., bolsas de estudo em quantidade e valor insuficientes) ou acadêmico (manutenção de aulas diurnas, conflitantes com as necessidades do pós-graduando trabalhador).

Mesmo com todos desafios e obstáculos, a obrigatoriedade de reserva de vagas em todas as ofertas stricto sensu da UFMG promove a conscientização sobre as desigualdades raciais e a entrada do tema, bem como de outras questões referentes a grupos sociais marginalizados, em áreas e cursos nos quais, provavelmente, ainda não se constituíam como objeto de reflexão ou pesquisa. Não obstante, há ainda uma caminhada a ser vencida para que, de fato, a política se torne efetivamente inclusiva. 

 

 

Referências

 

BARRETT, Susan M. Implementation Studies: Time for a Revival? Personal Reflections on 20 Years of Implementation Studies. Public Administration, v. 82, n. 2, p. 249-262, 2004.

 

LOTTA, Gabriela Spanghero. Implementação de políticas públicas: o impacto dos fatores relacionais e organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. 2010. 295 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

 

POSSELT, Julie R.; GRODSKY, Eric. Graduate Education and Social Stratification. Annual Review of Sociology, v. 43, p. 353, 2017.

 

RIGHETTI, Sabine; GAMBA, Estêvão; BOTTALLO, Ana. Só 1 em cada 4 matriculados em programas de mestrado e de doutorado no Brasil é negro. Folha de S.Paulo, 22 nov. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/11/so-1-em-cada-4-matriculados-em-programas-de-mestrado-e-de-doutorado-no-brasil-e-negro.shtml. Acesso em: 23 ago. 2021.

 

SABATIER, Paul A. Top-Down and Bottom-up Approaches to Implementation Research: A Critical Analysis and Suggested Synthesis. Journal of Public Policy, v. 6, n. 1, p. 21-48, 1986.

 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Resolução Complementar nº 02/2017, de 04 de julho de 2017. Aprova as Normas Gerais de Pós-Graduação da UFMG. Disponível em: https://www.ufmg.br/prpg/wpcontent/uploads/2021/07/Normas-Gerais-de-Pos-Graduacao-da-UFMG-%E2%80%93-No-02-2017.pdf. Acesso em: 24 jan. 2023.

 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de Pós-Graduação. Editais. Belo Horizonte, 2022. Disponível em: https://www.ufmg.br/prpg/editais/. Acesso em: 1 nov. 2022.

 

VENTURINI, Anna Carolina. Ação afirmativa na pós-graduação: os desafios da expansão de uma política de inclusão. 2019. 319 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

 

[1] Combinações únicas de PPG, nível de curso e processo seletivo (e.g., Ciência Política, mestrado, 2020/1).

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Publicado

2024-01-04

Edição

Seção

ST 5 - Políticas de Ações Afirmativas: análise, avaliação e monitoramento