A heteroidentificação na lei de cotas no Brasil: um olhar avaliativo à luz do relatório do TCU

Autores

Palavras-chave:

Políticas públicas, Ações Afirmativas, Cotas étnico-raciais, TCU

Resumo

Resumo simples

Este artigo tem o objetivo de discutir a heteroidentificação na Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) com um olhar avaliativo à luz do relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), processo TC 004.907/2002-1, publicado em 03/11/2022. Nesse relatório, o TCU indicou que há fragilidades na execução, no monitoramento e na avaliação da política de cotas. Dentre essas fragilidades, elegeu-se para este artigo o procedimento de heteroidentificação nas instituições federais de ensino superior (Ifes), buscando revelar quais as consequências das limitações dos processos de heteroidentificação para a política de cotas nas Ifes. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e documental com abordagem qualitativa, descritiva e analítica. O relatório do TCU conclui que a omissão do Ministério da Educação (MEC) na regulamentação para a realização da heteroidentificação é a principal fragilidade concernente a este procedimento, gerando percepção negativa e baixa credibilidade da sociedade em relação à política de cotas, baixa representatividade da população negra nas Ifes, manutenção da desigualdade racial, custo social e financeiro para a política de cotas.

 

Resumo expandido

Após uma década da sanção da Lei 12.711/2012, conhecida como a Lei de Cotas, chega, em 2022, o momento da revisão exigida no art. 7º da própria normativa. A referida lei determina em seu Art. 1º que as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Já em seu art. 3º, complementa que as referidas vagas serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação. Antes dessa normativa existiam iniciativas pontuais, promovidas por algumas Universidades Federais, para o ingresso de pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI) e de pessoas com deficiência no ensino superior no Brasil.

A Lei de Cotas, integrante do conjunto de políticas afirmativas, surgiu com o objetivo de combater a desigualdade racial resultante do regime de escravidão que ocorreu no Brasil. Assim, a referida lei visa contribuir para a redução da assimetria não só no que se refere ao acesso à educação superior, mas consequentemente ao acesso ao mundo do trabalho. A partir da sua sanção, passou a haver obrigatoriedade e unificação de critérios para reserva de vagas destinadas a Pessoas Pretas, Pardas e Indígenas-PPI, pessoas com deficiência, estudantes de escola pública e de baixa renda nas instituições federais de ensino superior e técnico.

O Estatuto da Igualdade Racial, sancionado pela Lei Nº 12.288 de 20 de julho de 2010, significou um avanço no reconhecimento dessas desigualdades, que imprimiram a negros e indígenas o peso da iniquidade que é, também, social. O estatuto é um marco importante na implementação de políticas públicas por constituir base legal para a consolidação das ações afirmativas, dentre as quais está a política de cotas, que utiliza da estratégia de heteroidentificação como instrumento apropriado para o combate ao racismo institucional.

A política pública surge quando um problema público é identificado, compreendido como tal e focalizado nas agendas. Para Secchi (2015), o problema público pode ser comparado a uma doença que necessita de um remédio: a política pública. Portanto, diagnosticar e delimitar um problema público é um passo importante e essencial na busca de estratégias de sua resolução/enfrentamento. Secchi (2015) argumenta que a maneira como o enfrentamento será abordado apontará a intencionalidade de tratamento do problema e o lugar desse problema na agenda governamental.

Atrelada a esse processo diagnóstico e integrando o ciclo das políticas públicas, a fase de avaliação encontra lugar importante e crucial na avaliação de políticas públicas. Para Trevisan e Van Bellen (2008), a avaliação é um mecanismo que melhora o processo de tomada de decisão, pois orienta a ação, fornece informações, seus resultados podem ser utilizados para criticar governos, identifica se os resultados de uma política ou programa estão em consonância com seus objetivos, podendo culminar na extinção, continuação ou aperfeiçoamento. É nessa perspectiva que Garcia (2020) afirma que avaliação tem conexão e sentido com políticas públicas. Nessa esteira, as políticas afirmativas surgem como alternativa de enfrentamento das desigualdades raciais que fazem parte da formação estrutural da sociedade brasileira (ALMEIDA, 2021).

O TCU, ao realizar auditoria sobre a execução e o monitoramento da política de reserva de vagas para ingresso nas Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) no Brasil, do período de 2013 a 2022, regulamentada através existência da Lei de Cotas, identificou, no seu relatório acórdão 2376/2022-Plenário, processo TC 004.907/2002-1 publicado em 03/11/2022, desarticulação, omissão dos agent es envolvidos e deficiência de monitoramento e avaliação da política de cotas. Ou seja, foram identificadas algumas fragilidades. Embora esse documento tenha natureza de auditoria, teve como principal objetivo avaliar a referida política, em especial a aspectos relativos às dificuldades e desafios e ao acompanhamento e monitoramento da política, visando apresentar contribuições para a revisão da Lei 12.711/2012 (BRASIL, 2022b). Portanto, é um trabalho que fornece elementos importantes do ponto de vista avaliativo, pois apresenta um mapeamento detalhado do seu objeto, identifica suas falhas, discute a avaliação e elabora propostas de aperfeiçoamento.

Dentre as fragilidades identificadas, elegeu-se para este debate o procedimento de heteroidentificação nas instituições federais de ensino superior. Diante disso, o objetivo deste trabalho é discutir a heteroidentificação na Lei de Cotas com um olhar avaliativo à luz do relatório do TCU, com destaque para os itens 3.2 e 5 do referido documento, que tratam respectivamente do procedimento de heteroidentificação e do monitoramento e avaliação da política de cotas. Assim, buscou-se responder quais as consequências das limitações dos processos de heteroidentificação para a política de cotas nas Ifes. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e documental com abordagem qualitativa, descritiva e analítica.

Enquanto resultados encontrados, através da análise deste relatório do TCU, constatou-se a omissão do MEC em normatizar as bancas de heteroidentificação nas Ifes e nos concursos públicos. Revelou ainda que esta ação pode contribuir como mecanismo possível de redução de fraudes no acesso à política de cotas, havendo o esforço de identificar indicadores que apontem a necessidade de aperfeiçoamentos para a execução dessa política pública. 

As ações afirmativas fazem parte de uma Política Pública que ainda não alcançou seus objetivos basilares que são uma maior representatividade da população negra nas Ifes, visto que ainda se mantém uma desigualdade racial, principalmente em cursos mais elitistas. Assim, faz-se necessária a regulamentação e padronização do procedimento de heteroidentificação, sistemas integrados que possam acompanhar e subsidiar os processos de avaliação das ações afirmativas implementadas.

 

Referências

ALMEIDA. Silvio. Racismo Estrutural. Editora Jandaíra. Coleção Feminismos Plurais SP, 2021.

BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288/10. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496308/000898128.pdf. Acesso em: 01 dez. 2022.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório de auditoria operacional na Lei 12.711/2012 - Lei de cotas para ingresso no ensino superior nas Instituições Federais de Ensino (Ifes). Brasília: Tribunal de Contas da União, 2022b. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A2376%2520ANOACORDAO%253A2022/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520. Acesso em: 10 nov. 2022. 

GARCIA, Rosineide Pereira Mubarack (org.). Avaliação de Políticas Públicas: concepções, modelos e casos. UFRB. BA, 2020.

SECCHI, L. Análise de Políticas Públicas no Brasil: um panorama das perspectivas racionalistas e argumentativas. Encontro Nacional de Ensino e Pesquisa do Campo de Públicas, I. Anais. Brasília: ANEPCP, 2015 Disponível em: www.enepcp.com.br Acesso em 20 de nov. 2022.

TREVISAN, Andrei Pittol; VAN BELLEN, Hans Michael. Avaliação de políticas públicas: uma revisão teórica de um campo em construção. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 3, p. 529-550, jun. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/bCWckwnwwrvF8Pb9kDtjDgy/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 07 dez. 2022.

Biografia do Autor

Karla Reis, IFBA- Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia

Mestranda no Programa de Pós-Graduação da UFRB- Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Católica do Salvador (1992) e Pós-graduação, pela UNOPAR - Gestão Social: Políticas Públicas, Redes e Defesa de Direitos - Área de Conhecimento; Saúde e Bem Estar Social ( 2016 ). Atualmente é assistente social do IFBA-Instituto Federal de Educação, Ciência e tecnologia da Bahia. Tem experiência na área de Serviço Social e Gestão de Pessoas. Tem interesse em projetos de extensão, que tenham como objetivo, intervenções com a população mais vulnerável, com a utilização de metologias e recursos inovadores. Participação popular e mobilização das comunidades. Trabalhar com a captação de recursos e/ou com Políticas Públicas que possam interferir significativamente para a vida social, bem estar e do trabalho, da camada mais carente da população. Pesquisas que atuem com levantamento de dados e tragam conhecimento para propositura de Políticas Públicas que atuem com: drogas, sexualidade, inclusão, diversidade e educação.

Suiane Queiroz, Consórcio Público Interfederativo de Saúde Reconvale, em Santo Antônio de Jesus - Bahia

Graduação em Ciências Econômicas (2014). Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, Brasil.
Especialização em PROJETOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS. (2022). Centro Universitário Senac, SENAC/SP, Brasil. Mestranda em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, UFRB, Brasil. Atualmente é Ouvidora/SUS - Consórcio Público Interfederativo de Saúde Reconvale, em Santo Antônio de Jesus - Bahia.

Rosineide Mubarack, UFRB- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Professora Associada da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Vinculada ao Curso de Licenciatura em Biologia e ao Programa de Pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social (PPGGPPSS). E-mail rose.mubarack@ufrb.edu.br

Daiane Gomes, UFRB- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Possui graduação em Enfermagem pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2005). Atualmente trabalha na Secretaria De Saúde do Estado da Bahia-SESAB como enfermeira do Hospital Geral Cleriston Andrade- HGCA. Tem experiência na área de Enfermagem. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Gestão de Políticas Públicas - PPGGPP da Universidade Federal do Reconcavo da Bahia- UFRB. Membro do Grupo de Humanização Hospitalar- GTH, mediadora do Permanecer SUS no HGCA. Filiada à Associação Brasileira de Pesquisadoras Negras. Temas de interesse: Políticas Públicas, Raça e gênero, Racismo Institucional, Assistência de enfermagem, Popularização da Ciência.

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Publicado

2024-01-04

Edição

Seção

ST 5 - Políticas de Ações Afirmativas: análise, avaliação e monitoramento