Moradia primeiro e temporalidade
o programa Vila Reencontro e o legado de políticas públicas para a população em situação de rua
Palavras-chave:
moradia primeiro, políticas habitacionais, população em situação de ruaResumo
Resumo Simples
O objetivo deste artigo é analisar o eixo “Vila Reencontro” do novo Programa de Moradia Primeiro (ou Programa Reencontro) para pessoas em situação de rua do município de São Paulo, examinando elementos históricos, sociais e operacionais que atravessam o desenho do programa. Nesse sentido, serão mobilizadas discussões sobre população em situação de rua e que tratam da sua vinculação com políticas de moradia e assistência social, observando o histórico de construção das políticas públicas sob o recorte dessa população. Em termos metodológicos, o artigo será apoiado principalmente na revisão de literatura e no estudo do caso envolvendo as normativas relacionadas ao programa, a fim de se compreender como o programa incorpora novas demandas dos movimentos e, ao mesmo tempo, é influenciado pelo legado das políticas públicas realizadas anteriormente e o arranjo institucional. Por fim, os achados preliminares apontam que possivelmente o formato de política, que se pretende de moradia, é influenciado pela literatura e demandas dos movimentos, mas a transitoriedade da “moradia” é um indício do legado de políticas públicas para este grupo populacional, relacionado a um arranjo institucional que delega suas demandas primordialmente à assistência social.
Resumo Expandido
O trabalho a seguir tem como objetivo analisar o eixo “Vila Reencontro” do novo Programa de Moradia Primeiro ou Programa Reencontro, direcionado para pessoas em situação de rua (PSR) da cidade de São Paulo e apresentado no decreto nº 62.149, de 24 de janeiro de 2023. Esse eixo se pretende de caráter habitacional e inspirado no modelo consolidado internacionalmente de moradia primeiro. Nesse sentido, esse artigo busca compreender os aspectos fundacionais envolvidos no desenho do programa e relacionar com o contexto histórico e social da elaboração de políticas públicas voltadas para esse público-alvo.
Assim, para fins de acesso à política, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo marcado pela pobreza obrigado a se utilizar de logradouros públicos como espaço de vivência e que possui vínculos relacionais fragilizados, como descrito na Lei 17.252/2019. Desse modo, como um grupo heterogêneo marcado pela sobreposição de múltiplas demandas e vulnerabilidades (RIBAS, 2014), é preciso analisar a questão como um problema complexo e que requer, na construção de políticas públicas para esse grupo, frentes intersetoriais para o seu atendimento, com o objetivo de alcançar resultados perceptíveis (BICHIR e CANATO, 2016).
Com a pandemia da Covid-19 e o aumento da extrema pobreza no Brasil, famílias inteiras ficaram em situação de rua, modificando o perfil deste grupo e escancarando o déficit habitacional brasileiro. Isso se materializa em números: segundo o Censo municipal da população em situação de rua de 2019, 24.433 pessoas estavam nessa situação, já em 2023, são 31.884, um crescimento de cerca de 31%. Contudo, apesar deste aumento, não houve crescimento significativo na produção de políticas públicas para esse grupo populacional — nem no âmbito da assistência, nem no âmbito de moradia. Além disso, a prefeitura disponibiliza menos de 17 mil vagas de abrigo, evidenciando o grande déficit no número de vagas em relação à população que as necessita. Dessa forma, observa-se grande relevância no problema público apresentado, requerendo maior esmiuçamento contextual para se obter clareza no objeto de estudo do artigo.
Historicamente, conforme Salatino (2023), a questão da PSR é associada a uma questão da assistência social. Isso significa que, desde a gênese da visibilidade da questão como um problema de políticas públicas, como é contextualizado por Kohara (2018), as necessidades diversas desse público foram delimitadas à pauta da assistência social. Dessa forma, esta vinculação apresenta um efeito interessante pois, a princípio, a política de acolhimento levantada pela assistência social se apresentava como um modelo emergencial e transitório, lidando paliativamente com uma situação instaurada; entretanto, o que pode se observar é a continuidade majoritária desses modelos diante da pauta da PSR, de modo que a medida, considerada paliativa, se tornou a principal via associada ao público-alvo.
Assim, nessa construção de política pública, consolidou-se um modelo denominado de “escada de autonomia” (FEANTSA, 2011), operado pela lógica de avanço “por etapas” de diferentes políticas, partindo de estágios mais emergenciais em espaços compartilhados pelos indivíduos, até etapas com maior grau de individualidade e exclusividade do espaço, visando, conforme a resposta do usuário às políticas apresentadas, a moradia própria e a autonomia. Contudo, movimentos sociais e a literatura apontam neste modelo etapista uma ausência significativa de programas intermediários ou do topo da escada, assim como uma dificuldade de articulação para o avanço do usuário dos serviços, de maneira a não ocorrer a pretensão de continuidade e a conquista da “autonomia” que fundamentaria o modelo.
Diante dessa demanda que o Estado não consegue comportar pelas políticas disponibilizadas, o modelo de moradia primeiro, rompendo com a lógica da escada de autonomia (BRASIL, 2022), se apresenta, nacional e internacionalmente, como alternativa potencialmente eficaz para soluções concretas em relação ao cenário enfrentado. Dessa forma, atualmente o consenso entre os representantes dos grupos diversos do público em questão se baseia na necessidade primária de políticas de moradia, se configurando como um elemento resolutivo basilar para esse problema estrutural.
Nesse contexto, emerge o Vila Reencontro, que se divide em duas frentes, uma voltada para a locação social, sob gestão da companhia metropolitana de habitação (COHAB/SP), e outra voltada para o denominado “Serviço de Moradia Transitória”, sob gestão da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), que baseia-se em unidades modulares para pessoas com pouco tempo de rua. O desenho da atual proposta da prefeitura busca, em teoria, se aproximar do modelo de moradia primeiro. Nesse modelo, seria viabilizado moradia permanente e individualizada como ponto de partida, invertendo a lógica etapista e favorecendo o acesso habitacional como primeira etapa. Entretanto, a transitoriedade no desenho do Vila Reencontro repercute no desalinhamento com aspectos do modelo no qual ele se inspira, que prevê moradia permanente em aparelho público.
Similarmente, embora esta frente do programa se pretenda como um programa de moradia, ela está parcialmente inserida na pasta da assistência social, sendo uma questão de longa data sobre a PSR. Diante disso, é possível que embora haja uma tentativa do programa em se aproximar do modelo de moradia primeiro, o legado de políticas públicas vinculadas à assistência social possui efeitos significativos sobre o programa, sendo necessário compreender como ocorre este balanço.
Nesse sentido, será necessário adotar duas estratégias: primeiro, será realizada uma revisão de literatura sobre habitação e PSR, agenda setting e políticas públicas, a fim de se compreender a consolidação destes temas na literatura. Em seguida, o desenho da Vila Reencontro será esmiuçado, buscando compreender suas características e efeitos, em um estudo de caso através de análise das normativas que organizam e desenham a política. Com essas duas etapas, será possível observar se a Vila Reencontro se enquadra nos modelos consolidados de políticas públicas de habitação para PSR, se ela incorpora as demandas dos movimentos sobre moradia e como é moldada de acordo com o histórico de políticas públicas sobre o público-alvo. Como achado preliminar, constata-se que o formato de política, se pretendendo de moradia, é influenciado pelos movimentos políticos atuais, mas a transitoriedade da “moradia” indica o legado de políticas públicas para esta população, ligado a uma arranjo institucional que delega suas demandas primordialmente à assistência social.