CAPACIDADES ESTATAIS MUNICIPAIS E PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: A RENDA BÁSICA DE CIDADANIA DE MARICÁ (RJ)
Resumo
RESUMO SIMPLES
O trabalho pretende observar o processo de implementação da Programa de Renda Básica de Cidadania (RBC) do município de Maricá (RJ) a fim de compreender os fatores que explicam, em termos de capacidades estatais, as possibilidades de formulação e implementação de programas municipais de transferência de renda no Brasil. Parte-se de uma compreensão dos desafios impostos aos municípios brasileiros a partir da Constituição Federal de 1988 na forma do descompasso estabelecido entre capacidades estatais existentes e as novas competências atribuídas. No caso específico dos programas de transferência de renda, o trabalho discute sua tradição centralizadora.
A partir de uma análise da legislação municipal e de entrevistas semiestruturadas com atores relevantes para os processos de formulação e implementação da Renda Básica de Cidadania em Maricá (RJ), o trabalho conclui que o município enfrenta ainda dificuldades bastante parecidas com as dos demais municípios brasileiros, principalmente no âmbito das capacidades técnico-administrativas, e que o que teria possibilitado o desenvolvimento de políticas sociais municipais robustas, além de uma situação orçamentária diferenciada, seriam capacidades político-relacionais bem desenvolvidas.
RESUMO EXPANDIDO
A Prefeitura do Município de Maricá (RJ) conta, desde 2015, com uma iniciativa pioneira nos municípios brasileiros: um Programa de Renda Básica de Cidadania (RBC) com pretensões de universalização. O programa é, hoje, a maior política municipal de transferência de renda do país, pagando mensalmente $200,00 mumbucas (unidade de moeda social local que equivale a R$1,00) aos indivíduos cujas famílias têm renda de até três salários mínimos, atendendo a quase 43 mil cidadãos (27% da população residente estimada pela Prefeitura no ano de 2021).
O ineditismo do caso de Maricá se faz ainda mais evidente quando observado o modelo de proteção social adotado pelo Brasil a partir da Constituição Federal de 1988 que, apesar de municipalizar em grande medida a implementação da política de assistência social (em especial com a criação do Sistema Único de Assistência Social em 2005), tem mantido na alçada do Governo Federal a gestão dos programas de transferência de renda (sendo o principal deles o Programa Bolsa Família) (BICHIR E SIMONI JUNIOR, 2021).
Há um consenso na literatura de que o principal fator explicativo do caso de Maricá seria a compensação financeira volumosa recebida desde 2008 pela prefeitura em razão da exploração de petróleo no seu litoral, que vem permitindo ao município graus elevados e sui generis no Brasil de investimento próprio em políticas sociais. O trabalho propõe analisar, porém, uma outra dimensão de fatores (para além da orçamentária) que possa ajudar a compreender o sucesso do caso de Maricá: a das capacidades estatais municipais.
A partir de 1988, com a promulgação da nova Constituição e a nova caracterização dos municípios como entes federativos autônomos, a esfera municipal se torna o centro de implementação e oferta de políticas públicas (GRIN e SOUZA, 2021), passando a assumir competências até então centralizadas nas demais esferas de governo. Os governos municipais, porém, não necessariamente contavam com capacidades técnico-administrativa ou político-relacionais à altura das novas responsabilidades e a literatura vem mostrando, até hoje, que esse descompasso é bastante evidente no Brasil (GRIN e SOUZA, 2021).
O trabalho pretende, a partir do estudo do caso de Maricá, responder à seguinte pergunta de pesquisa: quais são os fatores que explicam, em termos de capacidades estatais, as possibilidades de formulação e implementação de programas municipais de transferência de renda? Especificamente, a pesquisa tem por objetivo compreender (i) quais capacidades estatais desenvolvidas pelo município de Maricá têm possibilitado a implementação do programa e (ii) em que medida essas capacidades se diferenciam ou não da situação dos demais municípios brasileiros para, com isso, (iii) discutir se a iniciativa de Maricá pode ser replicada, de forma adaptada, para outros municípios do país.
Entende-se, ainda, que o trabalho se justifica em dimensões tanto empíricas quanto teóricas. Dado o sucesso do caso do município de Maricá, debater a replicabilidade da iniciativa a partir da dimensão das capacidades estatais pode representar uma contribuição relevante para o debate a respeito do papel dos municípios nas políticas de transferência de renda no Brasil. Ao mesmo tempo, dado o caráter ainda pouco maduro e inédito da dimensão subnacional no debate sobre capacidades estatais (GRIN et al, 2021), entende-se que a análise do caso do município de Maricá pode representar um passo interessante de revisão e aprofundamento de conceitos dessa literatura.
A coleta de dados se organizou a partir de dois métodos centrais: (i) análise documental e (ii) entrevistas semiestruturadas em campo. A análise documental se deu em torno dos principais marcos normativos que orientam a política de RBC no município de Maricá, a fim de compreendê-la com maior profundidade. Foram realizadas 06 entrevistas semi estruturadas com atores estatais de médio e alto escalão do governo municipal, que tiveram como objetivo principal compreender os fatores que permitiram e permitem a formulação e implementação da política no município.
O trabalho conclui que Maricá tem sido um município muito bem sucedido, em primeiro lugar, na construção de capacidades relacionais bastante bem estruturadas - as políticas se consolidam na medida em que há um movimento da prefeitura, a partir de uma vontade política declarada, no sentido de estabelecer um novo padrão de interação com a sociedade tanto com a intenção de captar demandas quanto de firmar parcerias para a implementação de políticas públicas, e também de afirmar o poder de agência do estado na indução do desenvolvimento econômico e social do território. Apesar da origem no Estado, a análise da legislação municipal permite afirmar que mecanismos de participação social e parceria com organizações da sociedade civil estão bastante presentes na concepção da RBC.
Percebe-se, porém, que o município enfrenta ainda dificuldades bastante parecidas com as dos demais municípios brasileiros, e as tem driblado a partir do status político que a cidade adquiriu dentro do Partido dos Trabalhadores e também a partir, é claro, dos repasses relacionados aos royalties do petróleo. Maricá, segundo observado em campo, não conta ainda com um corpo de servidores públicos profissionais bem consolidado e estruturado, por exemplo, tendo que atrair talentos de fora para ocupar cargos no governo. Ao mesmo tempo, o município não desenvolveu capacidade fiscal de arrecadação própria significativa, mesmo com iniciativas que pretendem mitigar esse problema no longo prazo. Por hora, o município tem apostado em outros caminhos (a partir dos royalties) para preencher tal lacuna.
Em outras palavras, argumenta-se que, em termos de capacidades técnico-administrativas, a prefeitura de Maricá não necessariamente rompe com o padrão de fragilidade dos demais municípios brasileiros, mas tem apostado no desenvolvimento de capacidades político-relacionais como forma de impulsioná-las. Em resumo, Maricá é um caso de grande amadurecimento das capacidades relacionais e institucionais que estão impulsionando as capacidades técnicas e administrativas da prefeitura. A cidade é um exemplo de que capacidades políticas são fundamentais para garantir capacidades técnicas e administrativas e que não necessariamente o âmbito administrativo precede o âmbito relacional das políticas públicas.
Referências
BICHIR, R.; SIMONI JUNIOR, S. Disseminação de capacidades estatais na política de assistência social: uma análise na escala dos municípios. Capacidades estatais municipais: o universo desconhecido no federalismo brasileiro. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Cegov, p. 434-470, 2021.
GRIN, Eduardo José. DEMARCO, Diogo Joel. ABRUCIO, Fernando Luiz. Capacidades estatais em governos subnacionais: dimensões teóricas e abordagens analíticas. In: GRIN, Eduardo José. DEMARCO, Diogo Joel. ABRUCIO, Fernando Luiz. (Orgs.) Capacidades Estatais Municipais: o universo desconhecido do federalismo brasileiro. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV, 2021.
GRIN, Eduardo José; SOUZA, Celina. Desafios da Federação Brasileira: Descentralização e gestão municipal. Capacidades Estatais Municipais: O universo desconhecido do federalismo brasileiro, Cap 2, p. 86-123, 2021. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/236393/001134539.pdf?sequence=1. Acesso em 03 de out. de 2022.